domingo, 15 de junho de 2008

Primeira Vida

Há dois anos que estou de luto, por mim própria. Morri aos 35 anos depois de um processo lento, longo e doloroso. Não foi cancro mas espalhou-se e foi corroendo a minha vida, não foi mal físico mas também me toldou os movimentos, não tive um acidente nem fiquei tetraplégica, não perdi a visão nem uma parte do corpo, não me viciei em drogas ou álcool, não passei fome nem frio, não morreu alguém próximo, não fiquei completamente só, não fiz deliberadamente mal a ninguém mas sofri, lenta e prolongadamente sofri sem saber porquê e assim fui morrendo.

Nestes dois anos já consegui atenuar as minhas dores, o tempo é um amigo silencioso que ajuda a esbater os desgostos, mas sinto que ainda não chorei tudo e é preciso por tudo cá fora para encerrar o luto pela minha primeira vida; Há coisas que ficaram por dizer e por fazer, também estas têm que ser resolvidas para que o ciclo se complete, sei que não irão mudar nada nesta nova vida mas algo tenho que fazer, mesmo que seja apenas escrever sobre elas. No fundo o que eu preciso é tirar certos sentimentos e pensamentos que ainda me corroem e depositá-los em alguém ou em algo. Quando morri já não tinha amigos íntimos para chorar as palavras que precisavam sair, quem seria amigo de verdade para chorar comigo, para escutar e sentir? Eu tentei mas a pessoa que procurei só estava disponível para os próprios problemas e a falta de interesse só me deixava pior, desisti. Na falta de alguém sobrou o "algo" e a solidão empurrou-me para a necessidade de escrever, o papel pode ser melhor confidente que certas pessoas e assim comecei a transferir para aí o que estava depositado no meu coração e na minha mente. Para um verdadeiro luto preciso de vasculhar o passado, que ficou como um fantasma destes 35 anos. Como o papel tem os dias contados e eu até sou moderna é aqui que vou registar os meus silêncios, mesmo que sejam só para mim...